segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Reportagem - A comunidade, o desenvolvimento e o desenvolvimento comunitário: o que tudo isso quer dizer?


Para aqueles que trabalham no campo social, algumas expressões são tão usadas que chegam a ficar vazias. Tudo pode caber dentro delas – e, por isso mesmo, acabam não dizendo muito ou não produzindo efeito na prática social. “Desenvolvimento comunitário” é um desses casos. Não raro, essa expressão vem associada a outras, como “comunidades carentes”, “favelas” ou “políticas públicas”, na tentativa de formar uma idéia mais clara sobre o que é um trabalho de desenvolvimento comunitário.  Mas o que vem mesmo à mente quando juntamos “desenvolvimento” e “comunidade” no discurso – e na prática – social? A expressão é corrente no chamado “Terceiro Setor”, mas será que é também nos outros âmbitos que compõem o campo social, como a esfera político-partidária, os movimentos sociais e a prática de alguns movimentos culturais-sociais, como o hip hop e o anarco-punk? Se considerarmos que todos esses grupos realizam, à sua maneira, trabalhos de desenvolvimento comunitário, que efeitos produzem essas diversas práticas no campo sociaL – “comunidades” estão sendo “desenvolvidas”?
 
por Rita Monte
gestora de comunicação do Instituto Fonte


“É a primeira vez que escuto esse termo ‘desenvolvimento comunitário’”, diz Adriano de Freitas, membro da Cufa – Central Única de Favelas, de São Paulo, organização que reúne jovens de todo o Brasil em torno da produção cultural nas favelas, promovendo atividades nas áreas da educação, lazer, esportes, cultura e cidadania, segundo o eixo do hip hop. Localizada em 20 estados brasileiros, a Cufa entende que comunidade e favela são sinônimos, e afirma que “nosso trabalho é fazer com que as comunidades percebam que não há nada de errado em ser uma favela, que não é feio morar em uma favela, e que elas têm força para fazer seus projetos. Deixamos claro que não é papel da Cufa resolver os problemas da comunidade, isso é para o Governo fazer. Também deixamos claro que não combatemos o crime. Fazemos nosso trabalho e ninguém interfere, nem nós interferimos no contexto da comunidade. Claro que tem gente que pára o que fazia no crime quando entra para algum projeto da Cufa, mas tem outros que não param”, relata Freitas.

Freitas mora em Brasilândia, bairro periférico da zona Norte de São Paulo, e atua na base da Cufa instalada aí. O cenário em que trabalha, se diverte ou corta o cabelo é o mesmo: ele vive na comunidade. Além de Brasilândia, a Cufa-SP tem outras bases na cidade, e a relação com as comunidades onde se instala parte sempre de pessoas – empreendedores – que, como Freitas, quiseram cavar oportunidades de inclusão social nos lugares onde vivem. Para Freitas, a relação da Cufa com as comunidades “é uma relação de sociedade, de parceria. Não pensamos em defender a causa da comunidade – lutar por asfalto, colocar o programa Leve Leite lá... Não. Fazemos um trabalho social, ouvimos a comunidade, chegamos, fazemos o trabalho e pronto. Por exemplo, em uma comunidade no Rio de Janeiro, as mulheres reclamaram de sofrer agressões, então chamamos o Vitor Belfort para dar um curso de defesa pessoal. Em outro caso, ocupamos um clube-escola em Brasilândia que tinha poucas atividades e começamos a oferecer nossas oficinas (Hip Hop, musicais, teatro, basquete de rua, capacitação profissional etc)”, conta. E quando a Cufa sai da comunidade, o desenvolvimento dela pára? Freitas diz: “para a gente é bacana se a comunidade continua fazendo um trabalho depois que a Cufa saiu, mas isso depende de quanto ela vai conseguir fazer isso por si própria. Por exemplo, teve uma vez que a comunidade não quis mais a Cufa lá, e isso acabou tirando o apoio financeiro de lá também, já que o apoiador queria que a gente gerenciasse o projeto, porque temos excelência”, afirma Freitas.

Vivendo na comunidade onde atua, também, está Valéria Maria Ortiz Jimenez, presidente daAssociação Cultural Comunitária Pró-Morato. Valéria conta que a Associação nasceu como movimento a partir de rodas de conversas entre os moradores mais antigos da cidade de Francisco Morato, um dos municípios de maior índice de exclusão social da Região Metropolitana de São Paulo: “achamos que era hora de agir e não só ficar reclamando. Mas não adianta fazer um movimento de 10 pessoas querendo mudar a realidade local, assim como não adianta fazer pelas pessoas”, afirma. Ao se institucionalizar, a Pró-Morato escolhe como foco da ação de desenvolvimento comunitário os jovens moratenses: “para o jovem sair da condição de apatia, não é muito fácil. A família não tem diálogo com ele, porque geralmente trabalha fora e não tem tempo de conversar; o que ele traz dentro de si é um universo muito menor, ele não enxerga possibilidades. Percebemos que os jovens não conseguiam trabalho e, quando conseguiam, não ficavam muito tempo porque não estavam preparados. Por isso, começamos a fazer um curso de capacitação para os jovens que estavam entrando no mercado de trabalho”, explica Valéria.

Para a Associação, falar em comunidade é o mesmo que dizer município: a cidade inteira é alvo do trabalho, ainda que haja uma atuação mais intensa com a juventude. Essa premissa traz o questionamento sobre a qualidade da relação com os moradores e com o Poder Público local para a Associação poder agir sobre o desenvolvimento de Francisco Morato. Valéria esclarece: “a Pró- Morato é reconhecida pelos moradores e mobiliza muitos voluntários e parceiros para seus projetos. Mas nós não temos contrato com a Prefeitura, e chegamos até a ceder nosso espaço para que ela faça alguns de seus projetos – sem dinheiro. Não temos parceria com o Poder Público e acreditamos que isso seja porque conseguimos desenvolver muitas ações de baixo custo, e sentimos que isso começa a incomodar... [Quanto aos espaços públicos de governança], temos representantes da Associação em diversos Conselhos – Saúde, Criança e Adolescente, Assistência Social – e mobilizamos a população para a criação do Conselho de Cultura do município, do qual participam quase 500 pessoas ligadas à Arte. Percebemos que nossa relação com a comunidade é baseada na capacidade de mobilizar seus ativos sem custo financeiro”, diz.

Que efeitos essa mobilização causou na cidade, em seu desenvolvimento? Para Valéria, a resposta está tanto nos números como na qualidade do relacionamento entre os moradores: até agora a Associação já capacitou 2020 jovens, estando 185 no mercado de trabalho pela lei do aprendiz. Desses, 70% foram efetivados após serem aprendizes. “Isso muda a realidade da família”, afirma a gestora, “tanto em termos econômicos, com a melhora da renda familiar, como em termos de auto-estima – alguns pais voltam a estudar, por exemplo. Provamos que quando se dá oportunidade para o jovem ter capacitação, isso reflete na família dele. Mas a gente não assina embaixo disso completamente: a comunidade deve se apropriar desses resultados”, reforça Valéria.

Rodrigo Alonso, arquiteto morador de Santos, também acredita que a comunidade deve se apropriar dos resultados – e também de seu próprio processo de desenvolvimento. Em sua atuação no Instituto Elos, ONG santista, Rodrigo chegou à definição de comunidade como um grupo com consciência de ter algo em comum, uma “comum unidade”. Assim, tanto uma favela quanto uma família, com esta consciência, podem ser uma comunidade. A partir desta percepção, no Instituto Elos Rodrigo realiza programas de desenvolvimento local pautados pela realização dos sonhos das comunidades – comunidades caiçaras, população de cortiços e favelas espalhadas por Santos. O que ele busca com isso? “Despertar a chama latente da mudança. A postura das pessoas, quando chegamos, é a do necessitado. O que queremos despertar é a postura do empreendedor”, conta Rodrigo. O arquiteto explica como fazer o desenvolvimento comunitário passar pela realização dos sonhos das pessoas: “nossa metodologia de trabalho é baseada nos ativos da comunidade: em buscar naquele mesmo lugar recursos humanos, culturais e materiais para a melhoria de vida deles. Chegamos com uma visão apreciativa: ouvimos suas histórias, valorizamos a comunidade. Nessa chegada, fazemos uma ação de encontro, de a gente se apresentar e construir uma relação, afetiva até, entre nós. Nesse processo de ouvir as histórias de diversos grupos da comunidade (mulheres, comerciantes, crianças, idosos...), buscamos focar mais nos talentos e sonhos que nos problemas. Acreditamos que falar de sonhos é falar com uma disposição diferente, com uma vontade diferente daquela que usamos quando falamos de uma solução para um problema. Após ouvir uma diversidade de sonhos, perguntamos: qual é o sonho que poderia unir toda a comunidade? Qual sonho vem reforçar o senso de ‘comum unidade’? Encontra-se um sonho em torno do qual todos se reúnem para realizar e passamos a construí-lo em conjunto”, relata.

O trabalho do Elos traz uma outra perspectiva sobre o desenvolvimento comunitário: quando o desenvolvimento acontece a partir de uma proposta “de fora”. A experiência do Instituto mostra que é possível – e legítimo – impulsionar o desenvolvimento de comunidades com as quais não se tinha relação direta antes do trabalho. Mas também aponta para o cuidado que um trabalho desses deve ter para que a equação intervenção “de fora”/emancipação da comunidade fique equilibrada e não reverta em uma relação de dependência. Rodrigo comenta: “a visão de que sou de fora é importante, mas tenho como princípio e motivação real o fato de que estou trabalhando lá porque me importa também. Fica muito claro na relação a forma como eles nos vêem, é diferente da forma como vêem outras ONGs e o Governo que, eventualmente, chegam lá com respostas prontas. A relação que construímos com as comunidades começa com autenticidade e interesse genuíno de se dedicar ao trabalho como algo importante para nós também. Quando chego, sou de fora. Mas a forma como chego determina se vou continuar sendo de fora ou se vou me colocar para dentro”, esclarece. Um exemplo desse cuidado com o equilíbrio entre intervenção e emancipação é o trabalho realizado na comunidade de Paquetá, bairro da região central de Santos, povoado por cortiços. Rodrigo relata:

“Desde os primeiros passos, procuramos levar parceiros nossos para que, quando saíssemos, a comunidade se apropriasse, gerenciasse e articulasse esses parceiros, dando continuidade ao seu processo de desenvolvimento. O sonho escolhido era construir uma praça para os moradores de Paquetá, e levamos empresas locais, o Sesc e uma ONG que trabalha com saúde, além de nós e dos moradores, para construí-la. Experimentamos o “mito da construção coletiva”, com resultados quase milagrosos, muito além do que se imaginava. Isso reforçou o senso de cooperação e o sentido de poder que eles têm juntos. Acreditamos que construir algo fisicamente e, depois, ter a obra pronta, gera um símbolo do poder deles juntos, uma lembrança de que eles têm recursos – e aí, temos o cuidado de construir utilizando os saberes deles e a forma de construir deles. Tendo construído a praça, foi como se o primeiro passo tivesse sido dado, existindo muitos outros por vir. E em Paquetá aconteceu exatamente isso: hoje a comunidade tem propostas para seguir em seu desenvolvimento, consegue conversar com o Poder Público sobre elas, sabe avaliar criticamente o que lhe é oferecido”, afirma Rodrigo.

A relação da comunidade com o Poder Público, na visão do Elos, é fundamental para o avanço do processo de desenvolvimento comunitário. Esta visão foi construída ao longo da atuação do Instituto: “no começo, quando propúnhamos fazer algo na comunidade, a resposta imediata era: ‘vamos falar com a Prefeitura ou com o vereador xis’. Queríamos evitar isso, de forma a empoderar a comunidade para que ela realizasse suas ações independente do Governo, como se não devêssemos esperar por eles para agir. Hoje vemos diferente. Vemos o Poder Público como mais um ator que deve participar do processo de desenvolvimento comunitário. O Poder Público existe para isso – se não é para apoiar o desenvolvimento comunitário, para que é? O diálogo com o Governo, no entanto, nunca foi fácil. Hoje, trabalhamos para fortalecer a comunidade para que ela possa dar diretrizes para o Poder Público. No momento em que a comunidade sabe o que ela quer, tem propostas feitas, isso serve de diretriz para a ação do Governo, ela sai da postura passiva e não mais deixa que o Governo faça qualquer coisa para eles. Se a ação governamental não é adequada à comunidade, ou a comunidade não se expressa bem, ou o Poder Público não a ouve”, acredita Rodrigo.

No Centro do Brasil, “Linha Dura”, da Cufa-Mato Grosso, teve o mesmo aprendizado que Rodrigo quanto à relação da comunidade com o Poder Público e o que isso implica para o desenvolvimento comunitário. Em Cuiabá, a Cufa-MT se articulou com outros movimentos sociais para conquistar um espaço na gestão municipal da Cultura. Esta ocupação não só reverteu em reconhecimento da Cufa como atora social no cenário político, mas reforçou a responsabilização da “comunidade” pelo seu desenvolvimento no diálogo com o Poder Público, mesmo fenômeno que Rodrigo relata acima. Para Linha, “o Poder Público é como a casa de todos, e queríamos propor políticas públicas de cultura. Por isso, a Cufa-MT, ao lado de outras 30 organizações, reivindicou o espaço e hoje participa da Governança Integrada na Secretaria Municipal de Cultura e, pensando junto com o secretário, assumimos a responsabilidade pela gestão pública da Cultura em Cuiabá. Isso é uma quebra de paradigma: trabalhamos junto com o Poder Público, e não ficamos apenas esperando que ele faça seu dever como se fosse uma contrapartida aos impostos que pagamos... A sociedade também tem dever de agir: todo mundo faz projetos e atua como apoio ao Estado. A idéia da governança integrada partiu dos movimentos sociais de cultura de Cuiabá, e a Prefeitura encampou a idéia”, relata.

De quem realiza o trabalho de desenvolvimento comunitário, do público que compõe a comunidade, da forma como o trabalho acontece, dos princípios utilizados na ação, da qualidade das relações entre os diversos atores sociais envolvidos (indivíduos, movimentos, ONGs, empresas, Poder Público), dos objetivos do trabalho de desenvolvimento, uma coisa parece fundamental para se realizar, de fato, desenvolvimento comunitário: ter uma idéia formada sobre o que é “comunidade”, o que significa e o que é necessário para desenvolvê-la. O Instituto Fonte também acredita nessa visão e, com base nela, empreende o programa Criadores de Possibilidades, iniciativa para o desenvolvimento comunitário que acontece em conjunto com empreendedores locais de diversas cidades brasileiras. Para o coordenador nacional do Criadores, Antonio Luiz de Paula e Silva – que desenvolve o programa na cidade onde mora, Bauru –, “o que o Instituto Fonte faz com esse programa, por sua própria vocação, é criar espaços para que pessoas reflitam juntas sobre os esforços que fazem para empreender o desenvolvimento de suas comunidades. Hoje de manhã, na apresentação do programa para apoiadores, houve múltiplos sentidos de ‘comunidade’: teve gente que achou que seu bairro era comunidade; teve gente que achou que seu time era uma comunidade; teve quem achasse que o departamento de uma empresa era uma comunidade. E então, perguntaram: Bauru pode ser nossa comunidade? Ao sentar junto, refletir e aprender no encontro, pensamos em como podemos fazer da nossa cidade uma comunidade. O que o Criadores de Possibilidades carrega é a premissa de que para fazer um trabalho de desenvolvimento comunitário, você tem que definir o que é comunidade para você. Se não, você pode estar fazendo o trabalho que for, mas esse trabalho não será de desenvolvimento: sem definir de qual ser estou falando, como trabalhar com o desenvolvimento dele?”, acredita.

---------------------------
Indicação de leitura:
Bauman, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Jorge Zahar Editor

Comentários

Enviar novo comentário

Nenhum comentário:

Postar um comentário