terça-feira, 3 de agosto de 2010

Redes e desenvolvimento local - Cássio Martinho

 



O Brasil, muito recentemente, tem descoberto a potencialidade da rede como forma ou estrutura de organização capaz de reunir pessoas e instituições em torno de objetivos comuns. A rede é um padrão organizacional que prima pela flexibilidade e pelo dinamismo de sua estrutura; pela democracia e descentralização na tomada de decisão; pelo alto grau de autonomia de seus membros; pela horizontalidade das relações entre os seus elementos. Ao contrário dos tipos tradicionais de organização social (cujo organograma é sempre uma variação da forma da pirâmide), nos quais o poder está sempre concentrado  em apenas um ou em alguns poucos pontos, a rede opera por meio de um processo de radical desconcentração de poder. “A morfologia da rede (...) é uma fonte de drástica reorganização das relações de poder”[i], afirma Manuel Castells.

A situação do poder na rede talvez seja o seu principal caráter distintivo em relação aos demais modelos de organização. A rede é um conjunto dinâmico de elementos por definição já empoderados e que mantêm entre si relações isonômicas. Todos partilham o mesmo grau de poder e é isso o que confere natureza de rede à rede. Ou seja, só existe rede com o poder diluído. Esse conceito (da diluição do poder, das responsabilidades ou das operações estratégicas) está na origem da Arpanet, a rede criada pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos para impedir a destruição do sistema de comunicação do país em caso de conflito nuclear e que resultou na internet tal como hoje a conhecemos. O princípio era o de distribuir numa miríade de pontos a capacidade de ação do sistema de maneira a manter perene ou ampliar essa capacidade de ação.

A compreensão desse aspecto torna mais clara a idéia do que vem a ser um padrão horizontal de organização e ajuda a separar aquilo que é rede daquilo que mais não é do que pirâmide disfarçada. Muito do que hoje chamamos de rede (como as cadeias de lojas, unidades fabris, emissoras de TV) não passa de sistemas hierárquicos verticais de base estendida, uma vez que há um controle central de onde emanam as regras a que os demais elementos devem se sujeitar. A autonomia dos nós desse tipo de “rede” é restrita aos limites estabelecidos pelo controle central. Se é verdade que a capilaridade e a extensividade dessa arquitetura organizacional aumenta a capacidade de ação da estrutura, é também certo que, isolado o comando central, o “cérebro” do sistema, tal capacidade esvai-se de um só golpe. Tal estrutura pode ser tentacular, mas não é rede. Onde há concentração de poder não há rede.

O binômio desconcentração de poder/rede tem implicações diretas no debate sobre desenvolvimento local integrado e sustentável, uma vez que não se acredita que um processo de desenvolvimento possa ser sustentável no longo prazo se não houver horizontalidade no processo e empoderamento dos atores responsáveis por conduzi-lo. A idéia do empoderamento é a base do conceito de capital social. Este pressupõe a capacidade dos atores de agenciar processos de autonomia individual e coletiva e de estabelecer articulações de natureza política. Certamente, de nada adianta – para fins de desenvolvimento humano e social, de caráter includente e emancipatório – se essa capacidade estiver concentrada nas mãos de um só agente. Para ser includente e emancipatório, um processo de desenvolvimento necessita disseminar a capacidade de fazer política, quer dizer, precisa democratizar a política e o poder. É preciso, assim, ampliar a base dos agentes decisores, multiplicar o número de agentes capazes de poder e manter essa base em ritmo contínuo de expansão.

Por isso, programas de indução ao desenvolvimento, de orientação vertical, que se mantêm pela imposição de regras e condutas de cima para baixo, estão fadados ao fracasso. A horizontalidade é uma espécie de exigência de um sistema com alto grau de empoderamento dos atores e é, também, o resultado necessário de um sistema desse tipo. As redes é que dão conta de articular – e de organizar, com métodos e metas – atores sociais autônomos, diferentes e empoderados, que não admitem subordinação (o fundamento da estrutura hierárquica vertical), mas tão-somente co-operação e co-ordenação. Por outro lado, se se quiser promover a coordenação das ações desses diferentes atores sociais, e potencializar sua capacidade de intervenção, será preciso, então, fazer deles uma rede.

As redes parecem tornar-se, assim, o padrão organizacional mais compatível com as necessidades dos processos de desenvolvimentoemancipatórios e includentes. Porém, é importante reiterar uma diferença fundamental entre a estrutura tentacular (mencionada acima) e a rede. A rede não é apenas uma composição formal, um jeito de dispor os elementos de maneira horizontal num plano, como se fosse bastante (como pensa certa tecnocracia do planejamento) “diagramar” um sistema para fazê-lo funcionar. Podemos estar dispostos em rede, sem operar em rede. A crença contemporânea de que a sociedade já se estrutura em rede parece ser vítima de uma espécie de “ilusão morfológica”. O fato, especialmente com a ubiqüidade dos aparatos tecnológicos de comunicação e informação, de estarmos “conectados” uns aos outros não é garantia de uma operação-em-rede, de uma co-operação policoordenada. O limite da morfologia é a política.

O que faz da arquitetura de rede uma rede é seu modo de funcionamento. No caso que nos importa aqui: um modo de operar que contemple, pressuponha e atualize a autonomia dos membros da rede; que faça da horizontalidade, da descentralização, do empoderamento e da democracia uma ética de operação.

Redes são uma forma de organização que implica um conteúdo de natureza emancipatória e não outro. Redes são a tradução, na forma de desenho organizacional, de uma política de emancipação. Não pode haver distinção entre os fins dessa política e os meios de empreendê-la.


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